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domingo, 16 de fevereiro de 2014

O dilema da nova resolução 466/12 e seu impacto nas pesquisas clínicas brasileiras


Recentemente me deparei com um dilema quando submeti um projeto de pesquisa com seres humanos ao Comitê de Ética em Pesquisa local: a nova resolução 466, definida pelo Conselho Nacional de Saúde*.
De acordo com esta nova normatização, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), a ser assinado em comum acordo entre pesquisador e indivíduo voluntário da pesquisa deverá conter, obrigatoriamente, a “explicitação da garantia de indenização diante de eventuais danos decorrentes da pesquisa”.
Diante disso, me perguntei como procederíamos com os novos projetos a partir de então, uma vez que agora devo, obrigatoriamente, deixar clara a possibilidade de ressarcimento material àqueles que julgarem-se prejudicados de alguma forma pela pesquisa em andamento. Digo “julgarem-se”, pois acredito que esta possibilidade explícita no TCLE poderá funcionar como um incentivo para futuros processos judiciais e abrir precedentes até então pouco comuns na nossa área.
É fato que todo cidadão que se sentir lesado pode (e deve) buscar seus direitos junto às instâncias jurídicas pertinentes, assim como a sociedade deve evoluir quanto à sua visão de ser humano e pesquisa. Mas até que ponto o fato de sermos obrigados a escrever e destacar no TCLE esta “garantia de indenização” é viável em um país onde qualquer possibilidade mínima de ganhos materiais muitas vezes torna-se uma fonte de lucros e vantagens para uma minoria? Como o pesquisador poderá lidar com estes novos rumos da ciência nos quais ele parece já ser julgado e muitas vezes condenado antecipadamente por leis e resoluções que pouco auxiliam na evolução da ciência em si?
Que fique claro que a questão central discutida nesta publicação não é a ética que devemos ter como pesquisadores (que deve embasar todo e qualquer procedimento de pesquisa) tampouco os direitos dos indivíduos voluntários (que devem ser sempre respeitados), e sim a obrigatoriedade de explicitação de ressarcimento aos mesmos em casos de danos. É notório (acredito) que a grande maioria dos pesquisadores atua com responsabilidade e respeito aos direitos dos indivíduos da pesquisa, assim como grande parte dos voluntários é provida de boas intenções ao aceitar participar de um projeto científico. Porém, uma pequena minoria poderia se valer de subterfúgios legais para pleitear ganhos materiais no decorrer do desenvolvimento dos projetos. Assim, me pergunto: quem arcaria com estas despesas? Deveríamos, como em alguns grandes ensaios clínicos, prever a cobertura de indenizações nos orçamentos iniciais dos projetos? Qual seria o posicionamento das agências de fomento e das instituições sede das pesquisas nestes casos? Quem assumiria estas responsabilidades?
Vale lembrar que mesmo que tais supostos danos ao sujeito da pesquisa não possam ou não sejam comprovados, já existirão despesas advocatícias e responsabilidades que poderão recair, a princípio, principalmente sobre o pesquisador responsável pelo projeto.
Para finalizar, vale a pena um cálculo rápido: supondo que em um projeto envolvendo 80 voluntários, um (1) veja esta afirmação de garantia de indenização do TCLE como algo vantajoso a ser pleiteado (por exemplo alegando um simples mal estar, um hematoma na colheita de sangue ou até mesmo constrangimento moral em algum procedimento realizado). Até que se prove o contrário, o pesquisador precisará se defender judicialmente e arcar com certos custos processuais. Subtraia estes valores do salário mensal da maioria dos pesquisadores. Multiplique os inconvenientes e some a tudo isso as consequências de um processo judicial na vida científica do pesquisador, nos projetos interrompidos, nas teses ou dissertações paradas, nos relatórios científicos e produtividade cobrados, etc.
E se ao invés de um processo tivermos dois, três…onde isso pode parar?
Só reiterando: ninguém tem a intenção de prejudicar o sujeito da pesquisa, a ética deve sempre valer e qualquer cidadão brasileiro já tem direito, por lei, a buscar suas compensações em quaisquer situações nas quais se sentir lesado, independentemente se são referentes à pesquisa ou não. Então, por que somos obrigados a praticamente oferecer indenizações aos voluntários de nossos estudos? Onde vamos parar? Quem sabe agora trabalhar apenas com modelos in vitro, pois com animais também não está fácil…mas isso é assunto para outro post.


*Resolução 466/12, publicada no DOU no 12 em 13 de junho de 2013 – Seção 1 – Página 59


 Post de Cristina Ribeiro de Barros Cardoso (Docente Imunologia, FCFRP/USP) e Paulo José Basso (Mestrando em Imunologia Básica e Aplicada, FMRP/USP).

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3 comentários:

  1. Concordo plenamente com todos os termos do texto deste excelente post. Não sei de onde tiveram a ideia de fazer essa nova resolução, mas é bem possível que inspirada no modelo americano. Porém, se seguíssemos à risca o modelo americano, eu poderia concordar com a resolução. Ou mesmo o alemão, em que uma "simples" doação de sangue para pesquisa deve ser paga ao voluntário diretamente em sua conta bancária. Aí, talvez tivéssemos que nos preocupar menos. Mas estamos num país em que os "ganhos" (se é que podemos falar em lucro, não falando apenas dos ganhos científicos) estão longe dos modelos americano ou alemão (acrescente-se aí os impostos, e as perdas com tarifas alfandegárias e meses de espera por um reagente importado que, quando chega, muitas vezes está vencido ou inutilizado, pelo calor ou diversos outros motivos). No Brasil, é proibido pagar ao paciente que doe qualquer amostra que seja, o que talvez seja importante para inibir o tráfico de órgãos (?). Se é esse o real motivo, não sei. Só sei que tenho medo do que pode vir por aí para os pesquisadores. É hora de pressionar o Romário no Congresso Nacional, o único deputado que parece se importar com pesquisa e saúde pública, ao que me parece...

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  2. Cristina e Paulo, meus parabéns pelo texto claro e objetivo a respeito dessa questão. A comunidade científica está cada vez mais encurralada pelo número de leis que inviabilizam a pesquisa desenvolvida no país. Não sei até quando vamos suportar.

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  3. Sua visão é apenas como pesquisador, mas não como participante da pesquisa. Assim com em um contrato há os direitos e deveres de ambas partes, como também multas para quem o quebrar, toda a garantia do participante deve ser clara e transparente no termo que ele assina em participar.

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