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segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Imunologia Antropófaga: Tupi or not Tupi? (por Vitor Pordeus)

“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do
mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De
todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi that is the question.”
Oswald Andrade, Manifesto Antropófago, 1928.

O Brasil é a sétima economia do mundo. É a trigésima terceira mortalidade infantil. A saúde
pública de nossas comunidades e os hospitais públicos parecem um apocalipse. Vacinas
não são capazes de resolver a saúde do sistema imunológico de nossa população. Nossa
imunologia é praticamente toda importada dos principais centros científicos do mundo nos
Estados Unidos e na Europa. Fazemos imunologia de primeiro mundo numa realidade de
terceiro mundo, consumindo altos volumes de dinheiro público. A imunologia é eixo de
formação de centenas de milhares de profissionais de saúde que diariamente atuam em
nosso sistema de saúde. A imunologia importada de altos custos, vacinas e anticorpos
monoclonais sofisticadíssimos, só está disponível para aqueles hospitais que podem pagar
seu preço exorbitante, absolutamente não chegando nas comunidades do Brasil que é onde
a vida sanitária da população efetivamente se passa. Acredito ser essa uma contradição
científica, diretamente ligada aos modelos teóricos que acreditamos explicar a nossa
realidade. Estudamos o anticorpo isolado do linfócito, o linfócito isolado do sistema imune, o
sistema imune isolado do organismo, o organismo isolado do ambiente, o indivíduo isolado
da comunidade, a comunidade isolada da sociedade e estas da biosfera. Acreditamos e
vendemos a ideia de que o mundo é perigoso e agressivo. Desse modo, a principal função
do sistema imune é defender o organismo, discriminando o estranho, contra os ataques
terríveis do processo de evolução cuja mola principal seria a seleção daqueles organismos
mais aptos a vencer a corrida da vida. Se os microorganismos isolados são a ameaça, a
solução são as “balas mágicas”, fármacos específicos contra cada elemento. Se a natureza
fosse assim, certamente poderíamos esperar mais eficiência desses modelos na construção
da política pública sanitária nacional e internacional. Na análise populacional podemos
enxergar que há algo de podre nos modelos explicativos das doenças. Quanto dinheiro ainda gastamos com fumacês, mata-mosquitos, fármacos contra a tuberculose - quando sabemos que a tuberculose é doença da miséria - estratégias artificiais e farmacológicas de lidar com a saúde comunitária, educação didática e prescritiva, campanhas repetidas todos os anos há cem anos, revelando que há algo de muito contraditório entre o que pensamos que estamos fazendo nos laboratórios médicos e o que realmente se passa com os pacientes. Será quenão há uma maneira mais científica de lidar com os desafios sanitários de nosso país?
De acordo com o neurobiólogo Humberto Maturana, aquelas explicações que devemos
chamar de científicas são aquelas que contém um mecanismo gerativo do fenômeno que se
está explicando. O mecanismo gerador é o método, o procedimento, o jeito de fazer capaz
de reproduzir o fenômeno. Quer dizer que a atividade científica afeta e é afetada
profundamente pela realidade material das coisas. Além de explicar, o cientista é capaz de
mostrar na prática aquilo que ele está afirmando. Se pesquisamos e explicamos
cientificamente, nossa ciência tem que ser capaz de iluminar e modificar a realidade da
saúde de nossa população. Mas parece que estamos dentro de um Castelo luxuosíssimo
cercado por um mar de favelas violentas, com realidade sanitária medieval. Parece ficção,
mas é realidade.
Antropofagia
O poeta Oswald de Andrade publicou em 1928 o manifesto antropófago que convoca o povo Brasileiro a repensar sua identidade, e utilizando como metáfora a tradição ritual antropófaga dos índios originários de grandes faixas do território nacional, que consistia
em devorar o inimigo capturado em ritual coletivo para a absorção mágica de seus poderes.
Movimento crítico de exame das ideias e cultura da colonização para descobrir o país e povo do Brasil. Ou revemos as ideias e teorias que nos colonizaram criando uma perspectiva particular de realidade, ou não seremos capazes de encontrar o imenso patrimônio científico, cultural, genético, biológico e antropológico de nosso próprio país que é índio, negro, mediterrâneo, árabe, judeu, que é mestiço e comporta dentro de si todas as humanidades da terra.
O manifesto estava no contexto histórico maior iniciado na Semana de Arte Moderna de
1922 onde um grande grupo de artistas, dentre eles, Tarsila do Amaral, o Maestro Heitor
Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Di Cavalcanti, Carlos Drummond de Andrade, Manuel
Bandeira, entre outros, liderados por Oswald e Mario de Andrade, se lançaram na missão de experimentar o experimental e descobrir caminhos novos para a cultura brasileira saturada dos bolores do velho mundo.
Felizmente, o Brasil produziu muitos cientistas e pensadores que entenderam as
singularidades, potencias e caminhos de nosso país e povo. Na imunologia, o principal
exemplo é Nelson Monteiro Vaz que na década de 70 fortuitamente descobriu a importância
do sistema imune das mucosas através do fenômeno da tolerância oral. Nelson não só
devorou a imunologia internacional absorvendo seus poderes, como através de associação
primeiro com Francisco Varela e depois com Humberto Maturana, Nelson reescreveu a teoria imunológica propondo uma fisiologia do sistema imune mais recentemente sintetizada em uma extensa obra experimental e teórica (Vaz et al., 2006; Pordeus et al., 2009).
Maturana, também grande antropófago, devorou a biologia e a neurobiologia internacionais,
propondo teoria revolucionária conhecida como Biologia do Conhecer e da Linguagem,
ampliando o entendimento sobre os fenômenos biológicos, configurando verdadeira
revolução paradigmática no campo da biologia contemporânea. Maturana e Mpodozis
publicam em 1992 a teoria evolutiva que oferece outra visão, Origem das Espécies por meio
de Deriva Natural, onde o processo evolutivo é explicado numa perspectiva sistêmica e
histórica.
 Irun Cohen, outro imunologista antropófago israelense, devorou a teoria normal, e vem
demonstrando linhas interessantíssimas de trabalho e explicação como a vacinação de
célula T sendo aplicada em síndromes autoimunes como Esclerose Múltipla entre outras, o
peptídeo fragmento de HSP para tratamento de diabetes em fase II de testes clínicos, os
chips de antígeno que analisam de centenas a milhares de reatividades imunológicas ao
mesmo tempo, traçando padrões globais de atividade imune, finalmente rompendo com as
análises unívocas, de relações específicas, mostrando que de fato lidamos com uma rede,
de comportamento sistêmicos.
Somam-se a isso, imensos campos de evidências experimentais como a epigenética, o
microbioma, os “auto”-“anticorpos” “naturais”, a rede idiotípica dos anticorpos (que rendeu o
prêmio Nobel a Niels Jerne, dos maiores antropófagos da imunologia), e muitos outros
fenômenos biológicos que não fazem parte de um mundo competitivo
Outros cientistas como o geneticista já falecido Bernardo Beiguelman também defendem a
antropofagia científica, afirmando que devemos reeditar o movimento antropofágico de 1928, buscando a repensar o estratégico projeto científico nacional e suas políticas públicas numa perspectiva crítica, original, valorizando a realidade e os problemas de nossas comunidades e cidades que, sabemos, estão profundamente adoecidas.
Estamos condenados a uma ciência nova, antropofágica, que conheça e trabalhe a vida, a
realidade das comunidades, que seja livre de conceitos importados acriticamente e que seja capaz de produzir explicações e intervenções transformadoras de uma realidade de um país rico em recursos naturais mas pobre em ideias originais que façam seu povo se desenvolver cientificamente, culturalmente e assim por diante. Não temos tempo a perder e só podemos cooperar. Quem coopera faz junto, quem compete fala mal. Fazendo junto alcançaremos nossos objetivos comuns de paz, saúde e dignidade em nosso país. Basta de competição doentia e neurótica na ciência brasileira entendendo que sem um projeto científico inteligente, original, que explique de fato e modifique a realidade não teremos um país decente, que funcione, que dê certo. Somo filhos de uma era científica.
Esse ambiente de competição e desonestidade científica indubitavelmente afina-se com a
lógica imperialista do consumo e serve para alimentar a corrupção com o dinheiro público, a
má aplicação dos recursos públicos, a exploração financeira de pacientes, para o
autoritarismo científico, onde as universidades muitas vezes parecem feudos medievais com senhores feudais determinando os segredos da natureza. Infelizmente, enquanto lemos esse artigo determinados atores da política nacional e internacional enriquecem ilicitamente
montados em esquemas de corrupção científica na gestão pública. Estranhe o que não for
estranho.

Carlos Drummond de Andrade, poeta e profeta pessoalmente afetado pela antropofagia
oswaldiana, publica em 1940 e esclarece o diagnóstico de um mundo caduco que perdura
até os nossos dias.

Tupi!

ELEGIA 1938
 Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
--
Vitor Pordeus em Piratininga Ano 460 da Deglutição do Bispo Sardinha."
(Blog da Sociedade Brasileira de Imunologia, 13 Janeiro de 2014.)

Vaz, N. M., G. C. Ramos, et al. (2006). "The conservative physiology of the immune system. A non-metaphoric approach to immunological activity." Clin Dev Immunol 13(2-4): 133-142.
Pordeus, V., G. C. Ramos, et al. (2009). "Immunopathology and oligoclonal T cell expansions.Observations in immunodeficiency, infections, allergy and autoimmune diseases." Current Trends in Immunology 10: 21-29.


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