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segunda-feira, 1 de abril de 2013

Carta pra Carol


No post passado eu mostrei cenas de um regabofe festejando o sucesso da nova geração aqui nas terras  de Nova Amsterdam. Ontem jantando lá em casa, enquanto eu enchia a boca falando que a nova Amsterdam aqui foi fundada por judeus que viveram um tempo no Recife, alguém perguntou: e porque não chamaram de Nova Recife? Isso é o que dá escutar no rádio “Pernambuco falando para o mundo” quando você é menino...

Eu comecei falando de amigos e do Recife porque nessa sexta feira agora eu vou ao Recife, a caminho de Curitiba, onde me chamaram pra falar no Simpósio Sul de Imunologia (mais no mês que vem). No Recife, além de ver meus pais,  vou encontrar Verônica Coelho, Lula Brigido e Fernando Pinto, meus amigos queridos da faculdade... Embora tenhamos nos encontrado individualmente ao longo do tempo, faz 30 anos que não nos encontramos todos ao mesmo tempo. Então já programamos uma visita à faculdade, ao Pedro II, e a outros locais onde no fim dos anos 70 desafiávamos o pouquíssimo juízo que tínhamos... Por isso bateu uma nostalgia assim da escola, da juventude, e eu resolvi procurar um negócio que escrevi sobre Bezerra Coutinho no meu computador.  A busca no  spotlight me trouxe de volta uma carta que tinha escrito dez anos atrás pra Carol Guedes Pereira, minha quase sobrinha... Dei de cara com o documento errado, que por acaso virou o documento mais que certo...

…….
Carol querida

Ontem, quando você me mandou sua e-mail, eu acordei escutando João Gilberto, que é uma paixão antiga. Na verdade acordei vendo o Bom dia Brasil onde se falava de João, do show dele no qual você estava.  Lembrei da última vez que o vi, aqui no Carnegie Hall.  E lembrei que ele tinha sido a minha primeira descoberta de uma extraordinária musicalidade brasileira. Lembrei também de que ali por volta de 73, 74, descobri uma conexão entre João Gilberto - João Cabral, nas construções, na arquitetura. E de que me convenci que eles eram extraterrestres, que habitavam o  mundo longínquo onde vive a arte, do qual eram seus enviados, ciganos.   Uma vez Bernhard Holland, o crítico de música clássica do NYT, disse que o equilíbrio de João Gilberto é extraordinário.... “utter simplicity achieved by means of unnoticed complication”...  Dá pra ver que a carterinha do Mr. Holland deve ser  a de número 4...

Dei aula esta semana. Antes da aula meu colega Jay Unkeless estava discutindo um paper com os alunos e eu descobri Cem anos de solidão embaixo da cadeira de um deles. Peguei o livro e li a primeira página, onde Garcia Marquez  fala do cigano Melquíades. Eu tinha planejado mostrar na minha aula vários vídeos de leucócitos movendo, de chemotaxis, de neutrófilo bulindo. Disse no intervalo, brincando, que ia ser cinema. Na hora deu um estalo e disse que alem do filme a gente ia  ler o livro...Peguei o livro e li o trecho que tinha acabado de ler... Nele, Melquíades sai fazendo miséria com imãs, tirando pregos das paredes, e trazendo de volta objetos há muito perdidos. No meio do assombro das pessoas ele diz: as coisas têm vida própria, tudo é questão de despertar a alma delas. Era uma introducao perfeita pro conceito de chemokinesis.

Passei o dia pensando nessas conexões, no acaso de ter descoberto no chão da sala de aula, um livro onde está escrito na primeira página o mote, a chave: a  arte e a ciência querem chegar à alma das coisas.  Pra que, não sei, talvez pra animar o mundo.  Saí da sala com pressa, não falei com ninguém. Não sei dizer o que eles pensaram. Meu prof de patologia, Bezerra Coutinho, falava de Gulliver, de Pantagruel, e de carneiro com menta nas suas aulas na UFPE.  Ele era o que se chama aqui de um polymath, o capeta. Sabia de tudo, de schistosoma a arquitetura.  Era uma figura muito interessante. Usava óculos verdes de tão grossos,  tinha um andar desengonçado e uma voz pra lá de cavernosa. Eu tinha certeza que ele estava se divertindo com aquilo tudo. Hoje eu me divirto pensando que estou bezerreando meus alunos, ensinando que  tudo vale a pena se o juízo passeia e o coração é bom.

um beijo

Sérgio

ps. o ímã de Garcia Marquez é ...utter simplicity achieved by means of unnoticed complication....

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Em tempo: Carol Guedes Pereira hoje trabalha na Rockefeller, depois de uma residência em Harvard. Além de médica e pesquisadora,  é escritora (o  livro dela aqui). Outra presença brilhante da nova geração de brasileiros em Nova Amsterdam

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4 comentários:

  1. Hoje eu me divirto pensando que estou bezerreando meus alunos, ensinando que tudo vale a pena se o juízo passeia e o coração é bom.

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  2. Tive sorte de ter professores que me fizeram pensar. Muitos deles na escola, outros na vida; meus amigos, minha familia, muita gente. Aprendi muito. Sempre que posso falo nessas experiencias, pra compartilhar o que aprendi. O verbo bezerrear é uma homenagem ao prof Aluizio ai de cima. O que ele fazia na sala de aula era um troço heterodoxo, uma provocacao. Nao aprendi patologia nenhuma com ele. O que ele me ensinou é que ele tambem estava aprendendo.

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  3. Imaginei o senhor tendo aula com John Keating (Robin Williams) em "Sociedade dos Poetas Mortos".

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  4. Bem vindo a nossa Veneza que fundou a sua Nova Amsterdam! Também conto a historia dos Judeus de Recife aí, e adoro João Cabral

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